A letra que comeu o livro
Anzol
Muidinga lhe queria assim, pela boca.
Não como o pescador quer a boca ao peixe, com vontade de anzol-prisão. Nem como o dentista quer a boca ao paciente, com a sua ciência certa e caiada.
Muidinga lhe queria com intenção de alfaiate: tecer sorrisos.
Ela não.
Queria o dentista mesmo. E lhe pôs anzol.
Pedro Albuquerque
Pensar é estar doente dos olhos
O senhor Soares tinha dificuldade em enxergar bem. O senhor Soares usava óculos.
O senhor Soares precisava de amparo para caminhar. O senhor Soares usava bengala.
De certa forma, o senhor Soares desconseguia de fazer fosse o que fosse sozinho.
O cambiar dos dias levaram o senhor Soares a um oftalmologista que o fez olhar para um quadro muito grande e muito branco. O médico dos olhos perguntou-lhe quais as letras que ele via no quadro negro.
Ao senhor Soares lhe pareceu pior a dioptria. Mais do que havia imaginado. Confuso, pediu para testar um novo par de lentes. A mesma pergunta, a mesma dúvida e novas combinações de lentes avaliadas. Após vários pares de lentes, o senhor Soares aproximou-se do quadro branco. Tirou os óculos e as letras imiscuíram-se no quadro níveo. O médico aproximou-se, deu-lhe uma palmada nas costas e lhe suspirou: “Há qualquer coisa de belo nos quadros pretos não há?”
O senhor Soares, que não era médico, saiu do consultório a ver o quadro a cinzento. Escuro.
Há cores que só são benvistas sozinhas.
Pedro Albuquerque
A mosca Rosa
A mosca Rosa não tinha qualquer problema com o seu nome nem com a sua estirpe. Em primeiro lugar porque no sítio fechado onde vivia não existiam flores. Em segundo, também não havia qualquer variação cromática. A mosca Rosa viva num mundo de zebras. Zebras pretas com listras brancas, zebras brancas com listras pretas, e zebras listradas a branco e preto.
No mundo da mosca Rosa, existiam outras moscas pretas com vários nomes: Azul, Amarelo, Magenta, Violeta.
A mosca Rosa e a Mosca Azul não eram amigas. A mosca Rosa dizia às suas moscas para se fixarem nas listras brancas e a Mosca Azul, por sua vez, dizia às suas moscas para se instalarem nas riscas negras.
As moscas viviam presas e separadas pelos códigos ditados. Era o chamado código de barras.
Certo dia, um investigador externo quis compreender o fenómeno comportamental das duas moscas - a Rosa e a Azul. Meteu-as num frasco e levou-as para uma floresta colorida.
No meio de tanta cor as moscas ficaram invisíveis e perderam-se de vista.
Pedro Albuquerque
Emprenhar pelas orelhas
A senhora Inês nasceu com ovários nas orelhas.
Quando a senhora Inês ouvia uma vez, devolvia “-Olhe diga lá outra vez!” E recontava a dois ou três.
Água vem. Água vai. Tanto foram as palavras à fonte que os ouvidos da senhora Inês incharam de igual modo às barrigas: de fora para dentro, primeiro, dentro para fora, só depois.
E isto tanto assim foi, que as orelhas da senhora Inês começaram a extravasar os seus limites naturais e cresceram, cresceram. A senhora Inês, aos poucos, transformava-se em boneca russa carregando semelhantes dentro, com tamanhos variáveis.
Quando as orelhas da senhora Inês já estavam grandes e a estalar, as gentes notaram o tamanhão da gravidez. Sobretudo, muito pela força das orelhas que ora empurravam os populares contra a parede, ora os afunilavam uns contra os outros.
O ar ficou irrespirável. Sufocante.
Como em muitas situações clínicas idênticas, descobriu-se que o pai desertou a mãe. História pobre. As orelhas grandes como montanhas pariram dois ratinhos insignificantes. Com as orelhas recolhidas, toda a gente respirou melhor. A senhora Inês teve o final comum: mãe-solteira.
Pedro Albuquerque
A poesia
Acontece, por lembrança de calendário, que me queiram saber que é isto da poesia.
E quem mo dera saber.
Talvez a poesia seja caminhar sobre as pedras à força de pés descalços.
Ou, com os mesmos pés descalços, caminhar desabrigado sobre um céu de pedras.
Talvez a poesia seja achar beleza em todo o empedrado e, quem sabe, por insondáveis desígnios – uma luz que ali se acende a passar; um olhar que se recusa à direita e se acha na esquerda ou simplesmente porque sim – ir dar com uma pedra que, de entre todas, nos ganha um afeto maior.
Por outro lado, talvez a poesia seja mesmo achar feiura em todo o empedrado e, num gesto divinamente humano, lapidar o seixo como quem ingenuamente contraria a fealdade inaugural.
Talvez a poesia seja o ato de colher a pedra como se nela houvesse a possibilidade de flor ou,
quem sabe, deixá-la ali inerte como uma lembrança de morte seja, verdadeiramente, o que nos faz poetas.
Talvez a poesia seja a própria pedra.
Talvez a poesia nem seja pedra.
Talvez vá sendo pedra.
Pedra. Mas qual pedra?
Se tudo o que vejo é mar.
Pedro Albuquerque